A tradição cristã desde o século II atribui a Lucas a autoria do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos. Embora não tivesse conhecido pessoalmente a Jesus, Lucas parece ter sido companheiro de Paulo durante suas viagens missionárias (cf. At 16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,2–28,16). Paulo o lembra com simpatia (Cl 4,14; Fm 24; 2Tm 4,11) como “médico caríssimo” e colaborador.
Os críticos, em geral, confirmam Lucas, um pagão convertido, companheiro de Paulo, como autor do terceiro evangelho e dos Atos. Há quem duvide que ele tenha sido médico e “discípulo” de Paulo, apesar dos termos paulinos por ele usados e do vocabulário medicinal que lhe é familiar.
Lucas usou como fonte o evangelho de Marcos, composto entre 65 e 70 dC. Além do mais, em 21,20-24 parece aludir a pormenores concretos da tomada de Jerusalém em 70 dC. Por isso Lucas deve ter sido escrito entre 70 e 90 dC. É incerto o lugar de composição: Grécia, Acaia, Beócia, Roma ou Antioquia da Síria.
Lucas, seguindo o costume da Antiguidade, dedica sua obra a um certo Teófilo (1,3). Mas o evangelho se destina a um público mais vasto, formado, sobretudo, de comunidades gentio-cristãs. A finalidade é precisada no prólogo: “para melhor conheceres a firmeza da doutrina em que foste instruído” (1,4).
Lc quer expor “de maneira ordenada” tudo o que pôde pesquisar junto das testemunhas oculares, para dar a Teófilo um relato sólido dos fatos e da mensagem de Cristo, já antes conhecidos da catequese. Escreve, antes de tudo, uma história sagrada. Como servidor da palavra, interessa-se pelos fatos da vida de Jesus enquanto possam ter um significado para a fé em Cristo ressuscitado e para a vida das comunidades. A expressão “o que aconteceu entre nós”(1,1) mostra o duplo interesse: a vida pública de Jesus e a vida da Igreja.
Após os relatos da infância, Lucas segue o mesmo esquema geográfico de Marcos, interrompendo-o duas vezes (6,20–8,3; 9,51–18,14). Nestes trechos o evangelista insere algumas perícopes famosas que lhe são exclusivas, como a ressurreição do jovem de Naim (7,11-17), a pecadora arrependida (7,36-50), a missão dos 72 discípulos (10,3-12); as parábolas do bom samaritano (10,29-37), do filho pródigo (15,11-32), do administrador infiel (16,1-9), de Lázaro e do rico avarento (16,19-31), do fariseu e do publicano (18,9-14).
Dos quatro evangelistas Lucas é o que melhor linguagem e estilo apresenta, tanto pelo vocabulário mais rico e sem latinismos como pela sintaxe mais cuidadosa. Nota-se, porém, o influxo da koiné, a linguagem popular helenística. O estilo revela às vezes o influxo da tradução grega dos Setenta, que usa nas citações do AT, e de fontes semíticas das quais depende.
A concepção teológica própria de Lucas nasce da obra dupla, evangelho-Atos, da qual é autor. Com isso distingue melhor do que Mateus e Marcos entre os tempos de Jesus e os tempos da Igreja. Neste sentido Jerusalém se torna o centro para o qual tudo converge. O evangelho começa e termina em Jerusalém (1,5; 24,52s). Duas vezes Jesus é conduzido a Jerusalém durante a infância (2,27-38; 2,41- 50) e ali termina sua terceira tentação (4,9-12). Mais da metade do evangelho é colocada na perspectiva da viagem a Jerusalém (9,51–19,28), onde Jesus deve morrer (13,33; 18,31-34). À medida que Jesus se encaminha para a morte, obediente à vontade do Pai, prepara os discípulos (9,60; 10,3.16; 17,22-25) em vista da missão após sua ressurreição. Segundo Lucas, Jesus dedica-se exclusivamente a Israel, pois a pregação do Evangelho a todos os povos (cf. At 10–28), ordenada pelo Ressuscitado (Lc 24,47s), caberia à Igreja pós-pascal. Por isso omite a atividade missionária de Jesus na região de Tiro e Sidônia (cf. Mc 7,24–8,10). Não faltam, porém, alusões a prefigurações simbólicas sobre o futuro caráter universalista do evangelho (2,32; 3,6; 4,25-27; 8,39; 13,29; 14,16-24; 17,11-19).
A obra missionária se cumpriria com a força do Espírito Santo (24,49; cf. 12,12). Ele já age na vida terrena de Jesus (1,35; 3,22; 4,1.14.18; 10,21), mas há de animar todos os momentos da vida da Igreja, como se vê nos Atos. A realização dos planos divinos, portanto, é preparada pela Lei e pelos Profetas, continua com a atividade e a pregação de Jesus e culmina com sua morte e ressurreição em Jerusalém. A atuação de Jesus, porém, chega à plenitude com a vinda do Espírito Santo. Revestidos do Espírito Santo (24,49), os apóstolos haveriam de partir de Jerusalém e levar a boa-nova da salvação até os confins do mundo (Lc 2,31s; At 1,8).
A boa-nova da salvação impõe condições na convivência com o próximo (6,27-42; 10, 25-37; 17,3-4), exige renúncia aos bens (5,11; 6,20; 14,33) para combater o apego às riquezas (12,15-21; 16,19-31). Aos que a acolhem traz grande alegria, refletida em todo o evangelho: pelo anúncio da salvação (1,44; 6,23; 8,13), pela manifestação de Jesus (1,47; 2,10; 24,52) e sua acolhida (10,21), e pela conversão dos pecadores (19,6).
Lucas acentua mais do que Marcos e Mateus o amor de Deus para com os mais desprezados pelo judaísmo oficial, como os pecadores, os samaritanos e as mulheres, pois “o Filho do homem veio para procurar e salvar o que estava perdido” (19,10).
Fonte:
Livro – Quatro Evangelhos – Ed. Vozes