Introdução ao Evangelho de São Marcos
Como os outros evangelhos, também o segundo evangelho foi no início publicado anonimamente. Baseada no testemunho de Pápias (135 dC), a tradição é unânime em atribuí-lo a um certo Marcos. Este Marcos provavelmente era um judeu-cristão que gozava de muita autoridade na comunidade; alguém que emigrou da Palestina para Roma, passando para a missão gentio-cristã (cf. 7,1–8,9; 13,10; 14,9). Em geral é identificado com João Marcos em cuja casa Pedro se refugiou (At 12,12). Mais tarde foi companheiro de missão de Paulo e Barnabé (At 12,25; 13,5). Mas logo na primeira viagem separou-se deles (At 13,13), provocando a separação dos dois apóstolos no início da segunda viagem (At 15,37-39). Depois o vemos em Roma ao lado de Paulo prisioneiro (Cl 4,10; Fm 24; 2Tm 4,11) e, possivelmente, ao lado de Pedro (1Pd 5,13). Pápias apresenta Marcos como “intérprete” de Pedro, o que não se deve entender como tradutor, mas como expositor da pregação do apóstolo. O exame interno do evangelho mostra, porém, que Marcos depende de tradições múltiplas e não apenas de uma possível tradição petrina. Marcos escreve o evangelho para cristãos ainda ligados a uma origem palestinense, mas comprometidos com a missão entre os pagãos e com a Igreja formada de judeus e gentios. Segundo a tradição, Marcos compôs o evangelho em Roma. Mas alguns críticos acham que o evangelho poderia ter sido escrito em qualquer parte do Império Romano, sobretudo no Oriente. A opinião mais comum situa a composição de Marcos entre 65 e 70 dC. Não há argumentos decisivos para datá-lo após 70. Marcos escreveu o mais antigo dos evangelhos sinóticos, que serviu de fonte a Mateus e Lucas. Pode ser considerado o inventor do gênero literário “evangelho”, pois sublinha em seu escrito a importância de Jesus terreno para o anúncio da fé. Já antes de Marcos devem ter existido pequenas unidades literárias, como séries de discussões (2,1–3,35), e sobretudo o relato da paixão. Tais unidades, porém, davam apenas uma visão parcial da atividade de Jesus. Marcos é o primeiro a escrever uma “história” de Jesus desde o batismo até à ressurreição, dentro de uma sequência cronológica e geográfica artificiais. Mc não é simples colecionador de tradições. Ele é um verdadeiro escritor que elabora conscientemente as tradições recebidas, embora menos que Mateus e Lucas. Usa de um estilo popular e organiza as perícopes em torno de um centro de interesse. O ministério de Jesus, por exemplo, é concentrado na Galileia, pois este é o lugar da manifestação escatológica de Jesus e ponto de partida para a missão entre os pagãos (7,24-37; 14,28; 16,7; cf. 13,10; 14,9). Jerusalém é vista como o lugar da rejeição de Jesus...
Introdução ao Evangelho de São Lucas
A tradição cristã desde o século II atribui a Lucas a autoria do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos. Embora não tivesse conhecido pessoalmente a Jesus, Lucas parece ter sido companheiro de Paulo durante suas viagens missionárias (cf. At 16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,2–28,16). Paulo o lembra com simpatia (Cl 4,14; Fm 24; 2Tm 4,11) como “médico caríssimo” e colaborador. Os críticos, em geral, confirmam Lucas, um pagão convertido, companheiro de Paulo, como autor do terceiro evangelho e dos Atos. Há quem duvide que ele tenha sido médico e “discípulo” de Paulo, apesar dos termos paulinos por ele usados e do vocabulário medicinal que lhe é familiar. Lucas usou como fonte o evangelho de Marcos, composto entre 65 e 70 dC. Além do mais, em 21,20-24 parece aludir a pormenores concretos da tomada de Jerusalém em 70 dC. Por isso Lucas deve ter sido escrito entre 70 e 90 dC. É incerto o lugar de composição: Grécia, Acaia, Beócia, Roma ou Antioquia da Síria. Lucas, seguindo o costume da Antiguidade, dedica sua obra a um certo Teófilo (1,3). Mas o evangelho se destina a um público mais vasto, formado, sobretudo, de comunidades gentio-cristãs. A finalidade é precisada no prólogo: “para melhor conheceres a firmeza da doutrina em que foste instruído” (1,4). Lc quer expor “de maneira ordenada” tudo o que pôde pesquisar junto das testemunhas oculares, para dar a Teófilo um relato sólido dos fatos e da mensagem de Cristo, já antes conhecidos da catequese. Escreve, antes de tudo, uma história sagrada. Como servidor da palavra, interessa-se pelos fatos da vida de Jesus enquanto possam ter um significado para a fé em Cristo ressuscitado e para a vida das comunidades. A expressão “o que aconteceu entre nós”(1,1) mostra o duplo interesse: a vida pública de Jesus e a vida da Igreja. Após os relatos da infância, Lucas segue o mesmo esquema geográfico de Marcos, interrompendo-o duas vezes (6,20–8,3; 9,51–18,14). Nestes trechos o evangelista insere algumas perícopes famosas que lhe são exclusivas, como a ressurreição do jovem de Naim (7,11-17), a pecadora arrependida (7,36-50), a missão dos 72 discípulos (10,3-12); as parábolas do bom samaritano (10,29-37), do filho pródigo (15,11-32), do administrador infiel (16,1-9), de Lázaro e do rico avarento (16,19-31), do fariseu e do publicano (18,9-14). Dos quatro evangelistas Lucas é o que melhor linguagem e estilo apresenta, tanto pelo vocabulário mais rico e sem latinismos como pela sintaxe mais cuidadosa. Nota-se, porém, o influxo da koiné, a linguagem popular helenística. O estilo revela às vezes o influxo da tradução grega dos Setenta, que usa nas citações do AT, e de fontes semíticas das quais depende. A concepção teológica...
Introdução ao Evangelho de São João
Desde o testemunho de Irineu de Lião (180 dC) a tradição da Igreja antiga atribuiu a autoria do 4º evangelho ao apóstolo João, filho de Zebedeu. O exame interno do evangelho, porém, não permite concluir que o apóstolo tenha redigido o texto atual. Devemos admitir, contudo, que a figura de João esteja intimamente ligada à origem e ao desenvolvimento desta obra. De fato, no apêndice (21,24) o autor de João é identificado com “o discípulo que Jesus amava”, figura mantida em misterioso anonimato ao longo do evangelho. Aparece na última ceia (13,23), ao pé da cruz (19,26), junto ao túmulo de Jesus (20,2-8), no apêndice (21) e, provavelmente, se identifica com “o outro discípulo” (1,35.40; 18,15). As várias tentativas de identificá-lo com Lázaro, João Marcos ou com algum sacerdote de Jerusalém foram até agora infrutíferas. Ao que tudo indica “o discípulo que Jesus amava” é um personagem real e pertence aos Doze. Entre estes, o mais forte candidato a se identificar com o discípulo amado é o apóstolo João. O próprio nome João (Johanan = “Javé amou”, ou “agraciou”) parece sugerir tal identificação. Admite-se em geral que João tenha passado por um longo e complexo processo redacional. O núcleo original se deve a uma testemunha ocular, o discípulo amado. Depois, a tradição joânica foi redigida pelo evangelista, um discípulo de João, o qual recorreu também a tradições sinóticas, sobretudo Marcos e Lucas. O 4º evangelho foi escrito, segundo a tradição, em Éfeso. A crítica é favorável a tal localização. Foi ali também que após o ano 90 a escola joaneia fez a edição final do evangelho. Comparado aos sinóticos, o evangelho de João apresenta características bem distintas. Não adota o plano geográfico e cronológico dos primeiros três evangelistas. Parece pouco interessado no aspecto histórico da vida de Jesus, pondo em realce o seu significado para a existência cristã. Por outro lado, contém dados históricos e geográficos mais precisos que os sinóticos. Omite episódios importantes como o batismo e a transfiguração, a instituição da Ceia, a agonia, além de temas da pregação de Jesus, como o reino de Deus, o apelo à conversão e as parábolas. Em vez da escatologia iminente há em João uma tensão presente entre carne e espírito, entre vida e morte, entre luz e trevas, entre Jesus e seus discípulos e o mundo, entre os que creem e os que não creem. Os milagres são habilmente escolhidos e entrelaçados com discursos de Jesus e reflexões do evangelista, constituindo “sinais” da ação concreta da glória do Verbo de Deus. Após o prólogo (1,1-18), onde se apontam os temas principais, o evangelho se divide em duas grandes partes:...
Introdução ao Evangelho de São Mateus
Desde o II século a tradição atribui o primeiro evangelho a Mateus, o cobrador de impostos, chamado a seguir Jesus (Mt 9,9-17). Tal tradição repousa no testemunho de Pápias (ca. 135 dC), segundo o qual “Mateus ordenou os ditos em dialeto hebraico e cada um os traduziu conforme era capaz”. O atual evangelho de Mt, cujo original foi escrito em grego, seria, portanto, uma tradução livre do original aramaico. Mas a crítica não aceita uma identificação substancial entre o Mt aramaico e o Mt grego. Consequentemente, o evangelho grego de Mt não pode ser obra de um discípulo direto de Jesus (de Levi = Mateus). A tônica didática, não biográfica e impessoal de Mt, sua teologia pós-apostólica e sua dependência de Mc, são incompreensíveis numa testemunha ocular. O autor do Mt grego, além de ser versado nas Escrituras e nas tradições judaicas, é um exímio catequista e conhecedor da língua grega. Provavelmente é um judeu culto, bem familiarizado com a escola rabínica (13,52!). Segundo a tradição (Orígenes) Mt foi escrito para fiéis oriundos do judaísmo, com o que em parte concorda a crítica: Mt teria surgido num ambiente misto de cristãos provenientes do judaísmo e do paganismo, talvez na Síria. Seu autor tenta preservar o patrimônio espiritual de Israel, mas aceita a existência de uma Igreja gentio-cristã, ciente de que a mensagem de Cristo destina-se a todos os povos (28,19). Indícios provenientes de um exame interno, como as alusões à destruição de Jerusalém (Mt 21,41; 22,7; 27,25), sugerem uma data de composição posterior ao ano 70. A polêmica contra o judaísmo sinagogal ortodoxo de tipo farisaico supõe uma ruptura entre o cristianismo e o judaísmo oficial, como a provocada pela assembleia sinagogal de Jâmnia (85 dC), quando os cristãos foram expulsos da sinagoga. Com isso a data provável da composição de Mateus se coloca pelo ano 90 dC. Quanto à vida e atividade de Jesus, Mt adota o esquema geográfico de Mc, no qual insere muito material novo. Reelabora os materiais recebidos de Mc, encurtando narrativas, eliminando episódios anedóticos e corrigindo o estilo nos discursos e ditos de Jesus. Desencarna assim as narrativas do contexto original em vista da mensagem e procura ressaltar o sentido teológico de cada episódio, especialmente dos milagres, pondo em destaque a figura de Jesus. Melhor do que outros evangelistas, Mt conservou o sabor palestino, tanto no uso de fórmulas tradicionais da linguagem de Israel (“reino dos céus”, “terra de Israel”, “casa de Jacó”, “Cidade Santa, “ligar e desligar” etc.), como no acento original dos ditos de Jesus e no recurso a paralelismos e inclusões. Típico é também seu gosto por agrupamentos numéricos em torno...